Artigo de Josué Pellegrini | Diretor da Instituição Fiscal Independente e Consultor Legislativo do Senado Federal
O País está diante de um impasse no campo fiscal. O início da tramitação da proposta orçamentária da União para 2021, no Congresso Nacional, obriga a que se comecem a explicitar as linhas mestras da política fiscal do próximo ano. Mais do que em outros anos, há muita coisa em jogo. O País está em uma encruzilhada.
Desafio presente
O principal desafio é compatibilizar o cumprimento da regra do teto de gastos federais e a enorme pressão para elevar gastos, alguns necessários, outros nem tanto. Os necessários dizem respeito à proteção da parcela mais vulnerável da população, úteis também para evitar que a retirada brusca dos estímulos comprometa a recuperação da economia após a pandemia.
O cenário mais provável é que se substitua o temporário Auxílio Emergencial e o Bolsa Família por outro programa assistencial denominado Renda Brasil. Estimam-se gastos extras de R$ 30 bilhões em relação aos benefícios do Bolsa Família. Contudo, não são poucas as chances de que a disputa entre Congresso e Executivo eleve esse valor de modo significativo, a exemplo do que ocorreu com o Auxílio Emergencial.
O cumprimento do teto de gastos é igualmente importante. Há elevado risco de que as despesas superem o teto em 2021, ainda mais com as mudanças na política assistencial. A introdução dessa regra no ordenamento no fim de 2016 serviu para balizar expectativas favoráveis a respeito da sustentabilidade fiscal. Desacreditá-la ou enfraquecê-la justamente quando se tornará um efetivo limitador de despesas deixará o País sem âncora fiscal.
Caso isso ocorra, haverá enorme incerteza em um quadro de gigantesca necessidade de financiamento do governo federal. De acordo com estimativas da IFI, depois dos fenomenais 12,7% do PIB, de 2020, reflexo da resposta à pandemia, o déficit primário do governo central será de 3,6% do PIB em 2021, sem considerar grandes mudanças na política assistencial. A dívida pública, por sua vez, se aproximará de 100% do PIB no transcurso deste e do próximo ano, com encurtamento de prazo da dívida mobiliária e aumento da participação das operações compromissadas do Banco Central.
Vale reforçar a dependência que temos do cumprimento do teto. Outras regras fiscais importantes estão muito fragilizadas e inoperantes para conferir credibilidade ao compromisso com a responsabilidade fiscal. A regra de resultado primário, por exemplo, será basicamente redundante, em 2021, pois a Proposta de Lei de Diretrizes Orçamentárias relativa a esse ano prevê metas ajustáveis ao desempenho da receita.
Oportunidades perdidas no passado
Muitas oportunidades foram perdidas pelo País no passado, até que se chegasse ao dilema no qual se encontra. O período de bonança de 2004 a 2010 não foi aproveitado para aprimorar a atuação do Estado. Teria sido mais fácil reformar a administração e melhorar a prestação do serviço público. Ou então fazer a reforma tributária, ICMS, inclusive, reduzindo carga, ineficiência e complexidade. De 2011 a 2015, nada de reformas. Pior ainda. Houve deterioração das contas públicas, nos três níveis de governo.
No triênio 2017-2019, a tranquilidade proporcionada pelo teto de gastos e pelo cenário externo também não foi bem aproveitada. A mudança mais relevante foi uma reforma previdenciária com resultado apenas razoável, frente ao peso desse item no total do gasto federal. Ademais, os entes subnacionais foram excluídos, sendo que a dinâmica da despesa previdenciária é a principal responsável pelo desequilíbrio fiscal nessas esferas de governo.
O tempo perdido não se deveu à falta de diagnóstico. Há muito os analistas apontam a necessidade de uma ampla reforma do Estado. Virou quase ladainha. O problema é que simplesmente não há sustentação política para mudanças tão necessárias.
Pelo contrário. O normal são tentativas de elevar gastos, prática sem exceção entre poderes e esferas de governo. Por vezes, a decisão confronta a Lei de Responsabilidade Fiscal e a Constituição Federal. Até a recém aprovada Lei Complementar nº 173, em seu dispositivo que restringe o aumento do gasto de pessoal neste e no próximo ano, corre o risco de ser desrespeitada logo na partida.
Cenário futuro
A cobrança por tantos anos de gastos e pouca reforma deverá ser rigorosa nos próximos meses e anos. Para escapar ao dilema de ter que escolher entre teto de gastos e proteção aos vulneráveis será preciso avançar muito na área fiscal, em pouco tempo. O cenário político não traz otimismo conforme visto, mas resta a esperança de que, levado ao paroxismo, o País possa, enfim, seguir o melhor caminho.
Oportunidade
Um cenário desejável seria aproveitar o impasse e aprovar ampla e gradual reforma do Estado, nos três níveis de governo, com cronograma previamente estabelecido para os diferentes componentes do plano. O objetivo central seria melhorar a qualidade da tributação e do gasto, bem como reduzi-los como proporção do PIB, ao longo do tempo.
A submissão do gasto à ampla avaliação e revisão possibilitaria a prestação de serviços de melhor qualidade (saúde, educação, segurança, etc) e o redirecionamento dos benefícios aos que mais necessitam. Já o sistema tributário seria reformulado para se tornar mais progressivo e favorável ao aumento da eficiência e produtividade da economia
Estariam incluídos no plano a reforma administrativa e tributária e até mesmo eventual nova revisão das regras previdenciárias. O papel do Estado na economia também precisaria ser revisto de modo a incentivar os investimentos em infraestrutura e o empreendedorismo.
Contudo, as reformas mais urgentes são a fiscal e orçamentária. O objetivo central seria fornecer aos Executivos federal, estadual e municipal instrumentos que permitissem maior controle da despesa obrigatória, redução do gasto tributário e flexibilidade alocativa. Teriam que produzir efeitos já em 2021, nos três níveis de governo. No âmbito federal, a urgência é reforçada pela necessidade de viabilizar a ampliação da política assistencial, em sucessão ao Auxílio Emergencial.
Todas as reformas citadas, mas, especialmente, a fiscal e orçamentária e a nova política assistencial poderiam ser tratadas em conjunto, recorrendo-se às PECs Emergencial, dos Fundos e do Pacto Federativo (nºs 186, 187 e 188, de 2019, respectivamente), em tramitação no Senado Federal. Digna de registro também é a PEC nº 423, de 2018, na Câmara dos Deputados.
Essa estratégia torna possível conciliar a ampliação da política social com o restabelecimento da confiança no compromisso com a sustentabilidade fiscal. Assim, garante-se o atendimento das enormes necessidades de financiamento público, enquanto se processa o ajuste do Estado ao longo dos anos.
O risco da falta de sustentação política
Contudo, há um considerável risco nesse caminho. Novamente, vem à baila o problema da falta de sustentação política para as medidas necessárias. O pior que pode acontecer é que as PECs sejam aproveitadas para enfraquecer o teto e viabilizar mais despesas. Na verdade, pode ser pior, se essas despesas não estiverem relacionadas com uma boa política assistencial e se o encaminhamento das várias reformas aqui apontadas forem deixadas de lado.