Artigo de Daniel Duque | Mestre em economia pela UFRJ e doutorando pela Norwegian School of Economics. É Head de Inteligência Técnica no CLP e pesquisador no Ibre/FGV
No final de 2020, a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou a nova edição do relatório sobre o Índice de Desenvolvimento Humano, conhecido mundialmente pela sigla IDH. Agregando diversos indicadores, o IDH tem como objetivo avaliar e comparar as condições de vida da população de cada país, levando em consideração as dimensões de educação, saúde e renda.
O Brasil, infelizmente, perdeu cinco colocações no ranking. O país está no 84º lugar entre os quase 200 países avaliados. No topo da tabela, como nação mais desenvolvida, aparece a Noruega. O que impressiona é que os noruegueses estão em 1º lugar desde 2000, nas 16 edições do relatório da ONU.
O que faz da Noruega o melhor país para se viver, de acordo com as Nações Unidas? E quais as características que a diferenciam do Brasil, que está 83 posições atrás?
Neste primeiro artigo de uma série de três textos sobre esse assunto serão analisados alguns dos principais indicadores que compõem o cálculo do IDH. Devo dizer que, recentemente, deixei o Brasil para cursar doutorado na Norwegian School of Economics (NHH), de modo que, desde então, tenho observado de perto muitos desses fatores e como eles se diferenciam em relação à realidade brasileira. A análise terá, portanto, um componente pessoal.
Renda da população
O primeiro ponto a ser considerado é o nível de rendimento da população. Tal como os demais países nórdicos — Suécia, Islândia, Dinamarca e Finlândia –, a Noruega integra o seleto grupo de países desenvolvidos, entre os 30 mais ricos do mundo. Para se ter uma ideia, enquanto o PIB per capita do Brasil está em torno de R$ 3.000 mensais (próximo da 100ª posição), os nórdicos ostentam uma média mensal próxima a R$ 11.000, valores já corrigidos por diferenças de preços.
Diversos fatores, principalmente os institucionais (sobre o tema vale a pena ler ‘Por que as Nações Fracassam’), explicam a diferença significativa de rendimentos entre países de renda média, como o Brasil, e o grupo dos desenvolvidos. de Acemoglu e Robinson.)
Para se ter dimensão da diferença, mesmo na longínqua década de 1970, quase meio século atrás, todos países nórdicos tinham um nível de renda superior ao nosso atual.
Mas há um fator que diferencia a Noruega de seus vizinhos: suas grandes reservas de petróleo e gás. De fato, até a década de 1960, os noruegueses tinham o terceiro PIB per capita entre os nórdicos. No entanto, a descoberta de importante campo de petróleo marítimo, em 1969, cuja produção se iniciou em 15 de junho de 1971, trouxe várias mudanças.
Petróleo não significa desenvolvimento. Mas, na Noruega, sim. Os recursos minerais incentivaram o desenvolvimento porque a boa qualidade de suas instituições permitiram a distribuição dos dividendos de tais recursos, sem apropriação por uma pequena elite, como ocorreu em tantos outros países. Os noruegueses prosperam rapidamente e, ao fim da década de 1970, já eram a população mais rica entre os nórdicos. Em 2019, a renda per capita da Noruega era 10% superior à da Dinamarca, o segundo país mais rico da região.
A Noruega não é o país mais rico do mundo. Não está nem mesmo nas dez primeiras posições: na média entre 2017 e 2019, ocupou o 11º lugar, atrás de países como a Suíça. Mas é um dos mais justos socialmente. O seu índice de Gini de 0,27, é um dos menores do mundo (cerca de metade do brasileiro). No indicador que combina renda e desigualdade, a Noruega fica em segundo lugar, atrás apenas de Luxemburgo.
O que faz a Noruega ser, portanto, tão equitativa? Países nórdicos são conhecidos por sua extensa rede de proteção social, financiada por pesados impostos progressivos. Na base de dados do The Standardized World Income Inequality Database é possível encontrar estimativas do Gini para dois critérios de avaliação, a renda de mercado e a renda disponível, ou seja, antes e depois de impostos e transferências. Os baixos índices de desigualdade nos países nórdicos são observados pelo critério da renda disponível, depois dos impostos e transferência. Pela renda de mercado, tais países teriam índices de Gini mais próximos aos do Brasil, como mostra a tabela abaixo.
A Noruega, no entanto, se mostra um caso também razoavelmente diferente dos demais nórdicos, por se tratar do país com menos desigualdade na renda disponível (em 6º na colocação geral), mas com a menor diferença deste em relação à renda de mercado (em 13º na colocação geral). Ou seja, o país tem sim um significativo estado de bem-estar social, mas esse não é tão importante quanto os vizinhos, porque a sua desigualdade é relativamente baixa mesmo antes dos impostos e transferências.
Tal nível de equidade se manifesta, portanto, já no mercado de trabalho. As tabelas abaixo, baseadas em dados do Ministério do Trabalho da Noruega e da PNAD Contínua do Brasil, mostra, o salário bruto médio por tipo de ocupação e por atividade econômica, já corrigido pelas diferenças de preços.
As tabelas mostram que os salários dos trabalhadores noruegueses são muito menos dispersos entre tipo de ocupação e atividade econômica em relação aos dos brasileiros. A maior diferença salarial entre a Noruega e o Brasil se concentra nas ocupações elementares (serviços de manutenção e limpeza, inclusive doméstico), agricultura e pecuária, que concentram os menores rendimentos do trabalho no Brasil. Já a menor diferença se encontra entre os profissionais das ciências intelectuais e da administração pública, respectivamente, que apresentam os maiores salários entre os brasileiros.
Instituições fortes
Qual seria o segredo da Noruega para ser um país quase que naturalmente equitativo? Caminhos naturais como o salário mínimo não são grandes suspeitos, tendo em vista que não há um mínimo nacional, cada setor e tipo de trabalho conta com seu piso salarial. Em vez de ser legislado pelo governo federal, os sindicatos da Noruega negociam os pagamentos dos trabalhadores por atividade, mas podem também variar de acordo com o nível de educação e idade.
De fato, os sindicatos noruegueses são estabelecimentos de grande poder. A maioria dos sindicatos menores é filiado a uma confederação maior, que acaba com grande quantidade de afiliados. A maioria delas tem cerca de 900 mil associados, para uma população de 6 milhões em todo país. As organizações maiores acabam lidando com as negociações coletivas, discutindo os níveis salariais com as empresas. Quando os valores são acordados, todos os trabalhadores recebem os novos salários, não apenas os membros do sindicato.
O nível educacional da Noruega também é um dos mais bem distribuídos do mundo, com grande parte da população com ensino superior e virtualmente todos com nível secundário. Há também uma grande preocupação pela equidade na qualidade da educação para todos os noruegueses. Esse fator é um grande determinante para a distribuição fortemente equânime dos rendimentos do país. Esse será o tema do próximo artigo.