A reforma previdenciária é muito mais do que um acerto de contas com as historicamente incontrastáveis elites da alta administração pública.
Há um furo fundamental no discurso em defesa da Nova Previdência: só se fala em privilégios. Mas o projeto não se resume a cortar benefícios imorais de uma pequena elite. A reforma previdenciária é muito mais do que um acerto de contas com as historicamente incontrastáveis elites da alta administração pública.
A reforma mexe, sim, com os privilégios dessa classe dominante, mas reduzir a retórica por sua aprovação a este aspecto é uma estratégia temerária — principalmente porque esse discurso abre espaço para contestações desonestas. Abre-se uma brecha na defesa da reforma, que tem sido explorada pelas corporações. “Paulo Guedes trata o pobre como se fosse privilegiado”. Com ligeiras variações, essa frase aparece com frequência na boca de opositores.
É bom tirar um pouco o foco dos privilégios das elites dominantes
Primeiro, porque apenas 18,2% do valor economizado pela Nova Previdência em 10 anos virão do corte de privilégios dos altos servidores públicos.
Segundo, porque não foram os privilégios imorais dos marajás que quebraram a previdência. Por injustos, eles são a face mais intolerável da questão. Mas o problema é mais profundo.
Para ser mais eficiente, a defesa da reforma precisa escapar da retórica do fim dos privilégios dos nababos das altas esferas da administração pública.
É vital, neste processo, encarar de frente a questão dos sacrifícios imediatos que vão ser exigidos da imensa maioria dos aposentados brasileiros, aqueles que contribuem para o INSS. É preciso ter coragem para admitir abertamente que não há saída aritmética para a previdência sem que a maioria seja afetada de alguma forma.
O efeito fiscal global maior é no INSS. Tem 30,3 milhões de pessoas no INSS. | Felipe Salto
O INSS é muito maior que o funcionalismo
Por que, em números absolutos, o INSS consome sete vezes mais recursos públicos do que a previdência do funcionalismo. Isso é óbvio, dado que os servidores do setor privado são muito mais numerosos que os servidores federais. Por essa razão, 65,3% da economia prevista em 10 anos virá do INSS.
Proporcionalmente, a Nova Previdência é mais dura com o funcionalismo? Sim. Pela simples razão de que, proporcionalmente, o funcionalismo sempre usufruiu mais do que contribuiu para o sistema.
O Ministério da Economia pretende economizar junto aos servidores públicos cerca de R$ 224,5 bilhões nos primeiros 10 anos, ou 281% do gasto com eles em 2018 – que foi de R$ 79,9 bilhões. Quando se faz a mesma conta para os trabalhadores do setor privado, chega-se à conclusão que a economia com eles será 137% do percebido em pagamentos de aposentadorias no ano passado.
Sim, a reforma combate privilégios
São muitos os trechos da reforma que combatem privilégios. A nova idade mínima obrigará juízes, promotores e outros servidores de altos salários a trabalhar por mais anos antes da aposentadoria. Não por acaso, as principais corporações de juízes, procuradores e outros postos da elite servidora já lançaram uma nota pública contra a reforma, que seria draconiana ao cortar seus “direitos”.
Os privilegiados também pagarão mais em contribuições previdenciárias. Toda a tabela de contribuição mudará radicalmente. De acordo com cálculos do economista Carlos Góes, quem ganha até cerca de R$ 4500 pagará menos, quem ganha acima desse valor pagará mais.
Qual a moral da história? A moral da história é a de que o alto funcionalismo desfruta de privilégios inacessíveis aos simples mortais da iniciativa privada. Uma questão moral tem seu peso. As grandes revoluções da história política da humanidade se deram em torno de questões morais atiçadas pelos privilégios de minorias senhoriais.
Como é que você vai dizer que 100 reais é menos que mil reais? Depende do quanto a pessoa ganha. | Felipe Salto
Apesar de tudo, não há como sanear as contas públicas só cortando privilégios
Essa constatação, porém, não modifica o fato de que o impacto fiscal do regime de marajás é menor do que se convencionou acreditar – até por que as estimativas mostram que no longo prazo o déficit com as aposentadorias dos servidores tende a cair, enquanto o das aposentadorias privadas cresce exponencialmente.
O debate sobre a reforma previdenciária exige escolhas difíceis. Enquanto a maior parte dos brasileiros achar que o desequilíbrio que nos ameaça pode ser corrigido apenas com cortes no excesso de privilégios dos funcionários públicos, a reforma tende a ser empurrada com a barriga.
Veja como os gastos com beneficiários da iniciativa privada — BPC, RGPS e Abono Salarial — cresceram nas últimas décadas. Isso significa que a maior distorção, a que ameaça a sustentação do sistema de previdência, não veio dos privilegiados do serviço público. A solução precisa abarcar bem mais do que o combate aos privilégios. O discurso em defesa da reforma também.