Depois da aprovação do novo marco legal do saneamento, a nova lei do gás entrou na ordem do dia no Congresso. É também uma das prioridades do governo para atrair investimentos na infraestrutura. Não é para menos. Apesar da descoberta recente de grandes reservas do combustível e do enorme potencial de exploração do pré-sal, o gás natural ainda não chega a boa parte do território nacional. Esse é um gargalo enorme para uma maior presença do gás natural na matriz energética brasileira.
O gás natural, além de ser uma fonte de energia essencial para diversas indústrias, é essencial na geração de energia elétrica.
O acesso ao gás natural em todo o território nacional, a preços competitivos, é necessário também para ampliar a disponibilidade de termoelétricas próximas aos centros de carga. Dessa forma dão segurança e resiliência elétrica ao sistema, essenciais para uma matriz cada vez mais limpa.
Gás raro e caro significa baixa competitividade para o setor produtivo e um custo a mais para os consumidores brasileiros. Em razão da infraestrutura carente em vários elos da cadeia do gás natural, existe hoje praticamente um ofertante da molécula para as distribuidoras e consumidores livres. Além de produzir 98% de todo o gás natural brasileiro, a Petrobras ainda possui presença forte em todas as infraestruturas essenciais. Nesse sentido, apesar de não ter o monopólio por direito, como no passado, a Petrobras possui um monopsônio e um monopólio no setor de gás natural brasileiro. Com essas características e sem uma política pública adequada, o Brasil não vai conseguir enfrentar o problema número 1 do mercado de gás natural: a falta de concorrência na venda de molécula.
Escoamento, transporte e distribuição
Vale lembrar que o gás natural, assim como o saneamento, no mundo inteiro, é uma indústria de rede. Isso significa dizer que em diversos elos da sua cadeia de valor há o chamado monopólio natural. Como não podemos ter dois dutos de gás, da empresa A ou B, chegando até o consumidor, a regulação é que fará esse papel de defesa do consumidor. Por esse motivo, quando falamos de escoamento, transporte e distribuição, atividades de monopólio natural, as empresas prestadoras do serviço são remuneradas por uma tarifa, e não por um preço.
Comercialização
Diferente situação acontece na comercialização da molécula. Nessa parte da cadeia de valor deveria reinar a competição e a concorrência. Em um mercado maduro, como o americano, produtores e comercializadores brigam por preço (competição Gas To Gas). Aqui no Brasil, a Petrobras e seu gigantismo dificulta a entrada de outros competidores.
Apesar do escoamento e do transporte serem uma concessão federal, a promulgação da Constituição de 1988, em seu artigo 25 parágrafo 2º, concedeu aos estados a distribuição. As empresas distribuidoras são as responsáveis por distribuir, mas não comercializar gás natural. Portanto, o negócio de escoamento, transporte e distribuição são monopólios naturais, mas a comercialização pode e deve ser um mercado aberto à concorrência. Um grande consumidor deveria ter a sua disposição no mercado, uma multiplicidade de ofertantes de molécula de gás natural escolhendo os seus fornecedores. Não é assim hoje.
Insegurança jurídica
Enquanto esses problemas não são entendidos e endereçados, se dissipa a insegurança jurídica e os investimentos não decolam. Existem basicamente três tipos de gasodutos, os de escoamento (que levam o gás dos campos marítimos até as unidades de tratamento de gás natural), os de transporte (que levam o gás até as empresas de distribuição) e os de distribuição (que levam o gás até os consumidores empresariais e residenciais). Nos últimos anos, houve algum avanço na extensão dos dutos de distribuição, como resultado dos investimentos realizados pelas concessionárias estaduais, principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro, que tiveram os incentivos econômicos corretos. No que se refere aos grandes dutos de escoamento e transporte, entretanto, praticamente nada foi feito na última década. A malha permanece estagnada desde 2009, quando foi lançado um malsucedido plano para o setor.
Para efeito de comparação, os EUA, um país cuja dimensão territorial se assemelha à brasileira, possui 500 mil quilômetros de gasodutos de transporte e 2 milhões de quilômetros de gasodutos de distribuição. No Brasil, os números são os seguintes: 9.400 quilômetros de gasodutos de transporte e apenas 36 mil quilômetros de gasodutos de distribuição. A diferença é de 53 para 1 no primeiro caso e de 56 para 1 no segundo caso.
A Lei do Gás
O Projeto de Lei (PL) nº 6.407, de 2013, busca corrigir as falhas atuais. Tem entre seus objetivos dar fim aos litígios e à insegurança jurídica, além de promover a abertura do mercado à competição. O projeto tramita vagarosamente, mas, agora, faz parte do interesse tanto do governo como dos congressistas vê-lo andar mais velozmente. Ele ainda precisa ser votado na Câmara, antes de ser encaminhado para o Senado.
Pela nova lei do gás, haverá a divisão clara entre o que é transporte e o que é comercialização. Os compradores poderão escolher os seus fornecedores. O novo marco reduz a burocracia para a construção de gasodutos – será necessária apenas autorização, e não mais licitação. A importação, quando necessária, deverá ter menos entraves.
O governo é favorável à votação do projeto sem nenhuma alteração. No entanto, executivos e consultores do setor temem que, do jeito que está, a lei cumpra apenas parte de seus objetivos. Defendem a necessidade de fazer ajustes no texto para aprimorar a regulação, atrair investimentos e desenvolver as infraestruturas. Assim, afastar o risco da aprovação de uma nova legislação que mantenha o status quo e não desenvolva o setor.
O consultor Adriano Pires, diretor do Centro Brasileiro de Infraestrutura (CBIE), teme o risco de os investimentos ficarem concentrados nas áreas próximas ao litoral e serem dominados por um grupo restrito de empresas. É preciso assegurar que o projeto incentive os investimentos em malhas de dutos que cheguem ao interior do país, em regiões onde os investimentos são menos rentáveis. Uma das ideias é criar um órgão regulador, de maneira ao Operador Nacional do Sistema (ONS), da rede de eletricidade. Seria um órgão encarregado do planejamento do transporte de gás, buscando a universalização da oferta no território nacional, com parâmetros de qualidade. O governo, entretanto, acredita na viabilidade de um modelo diferente, de negociação direta entre as empresas.
Como demonstrou o caso do novo marco do saneamento, bons projetos bem negociados podem sim ser aprovados. O País não pode desperdiçar essa oportunidade. O aumento na demanda de gás natural poderá potencializar investimentos vultosos. A Empresa de Pesquisa Energética (EPE) identificou 11 projetos prioritários, cuja construção envolveria investimentos de R$ 17 bilhões. Até 4 milhões de empregos seriam criados. Os benefícios são evidentes.