Virtù News, desde o seu lançamento, encarou a reforma administrativa como uma das mais urgentes a serem feitas no País. Mesmo quando ela estava fora do radar da maior parte das autoridades e dos analistas, sempre dedicamos total atenção a ela. Isso porque, sem uma reestruturação ampla das carreiras dos servidores e da estrutura administrativa, o setor público continuará ineficiente e dispendioso. Será, além do mais, um fator de perpetuação da desigualdade nas oportunidades e na renda entre os brasileiros.
A reforma não deve ser vista como algo destinado a punir o funcionalismo. Muito pelo contrário. Ela deve ser focada justamente na valorização dos bons servidores, que devem ser incentivados a progredir em suas carreiras com base em metas e mérito. É impossível criar serviço público de qualidade num sistema incapaz de reconhecer, promover e treinar os bons servidores e demitir os funcionários incompetentes.
Hoje os incentivos vão no sentido contrário. Há promoções automáticas na carreira, como os abonos por tempo de serviço, a cada cinco anos, independentemente dos resultados obtidos. A sexta-parte assegura um benefício adicional aos vencimentos depois de vinte anos de trabalho. Os servidores contam com estabilidade e, na média, salários mais vantajosos do que os pagos para funções equivalentes na iniciativa privada.
São todos anacronismos assegurados pela Constituição e que precisam ser revistos com o objetivo de aprimorar a qualidade dos serviços prestados. Nas comparações internacionais, o governo brasileiro custa muito e produz pouco. Mais de um terço do PIB do País passa pelo setor público. Se ele não for mais produtivo, a produtividade total do país ficará comprometida.
Por isso é positiva a decisão do governo de, finalmente, apresentar uma primeira parte de sua proposta para a reforma administrativa. Trata-se de um primeiro passo tímido, mas sem ele a discussão em torno da reforma se mantinha atravancada. Isso porque, no caso da reforma administrativa, a iniciativa tinha de partir do Executivo, não do Legislativo.
Ao longo do último ano, o Virtù se dedicou a analisar os diversos aspectos relacionados a essa reforma. Apresentamos, por exemplo, os números do insustentável peso do funcionalismo. O governo é uma máquina de pagar salários: se o reajuste dos tivesse sido equivalente ao do setor privado desde 2002, o Brasil teria economizado R$ 90 bilhões de reais, dinheiro suficiente para bancar o Bolsa-Família por três anos.
Tratamos também das vigas mestras que devem escorar uma boa reforma: estabelecer critérios de desempenho para demitir servidores incompetentes, acabar com a promoção automática de carreira, estabelecer critérios claros de recrutamento e de avaliação para os cargos de confiança e reduzir o número de carreiras no serviço público.
Trouxemos a análise de especialistas no assunto. Mostramos a importância dela a promoção da igualdade e da competitividade. Recentemente, criticamos as tentativas de elevar privilégios em meio à pandemia e condenamos a possibilidade de adiamento da apresentação do projeto, como chegou a avaliar o governo.
Gasto desproporcional
O Brasil é o campeão mundial entre os países emergentes de gasto com funcionalismo público. São 12 milhões de servidores que custam ao contribuinte R$ 1 trilhão por ano. A máquina pública é grande, cara, ineficiente e drena quase 13% do PIB com gasto de pessoal. Trata-se de um nível superior até mesmo à de países da socialdemocracia europeia.
Esse gasto – desproporcional diante das capacidades e necessidades do país — vem inviabilizando a gestão pública. Na proposta de orçamento recém-apresentada pelo governo, o total de despesas previstas com os servidores é de R$ 119 bilhões. A situação é crítica nos Estados: onze deles ultrapassaram o limite constitucional de 60% das despesas com pessoal. Se nada for feito, quase todos os estados brasileiros terão atingido o teto de 60% até 2025.
Como resultado, sobram menos recursos para o Estado investir nas suas atividades essenciais e assim prover o bem comum. A função do Estado democrático moderno é servir o cidadão; no Brasil, o Estado se serve do cidadão para financiar a máquina pública.
Eficiência e melhores serviços
Não se trata apenas de uma questão de custo, como enfatiza a economista Ana Carla Abrão, uma das autoras de um estudo detalhado para embasar um projeto de modernização dos recursos humanos do setor público no País. A prioridade deve ser a eficiência operacional do Estado e a oferta de melhores serviços aos cidadãos.
A reforma administrativa é essencial para criar uma burocracia eficiente que seja capaz de prestar bons serviços – sejam eles no ensino básico, na segurança pública, na provisão de infraestrutura urbana, na arbitragem de conflitos, no cumprimento da Justiça. O desenvolvimento econômico e social depende da qualidade das instituições, e as instituições só serão efetivas se o governo cumprir as suas funções adequadamente. O que, inescapavelmente, requer bons servidores. Eles precisam ser capacitados para cumprir as suas funções. Hoje, entretanto, como o governo gasta muito com salários e penduricalhos, falta verba para investir na tecnologia e treinar os servidores.
A reforma terá que enfrentar o corporativismo, que capturou o Estado e criou um emaranhado de mais de 300 carreiras públicas, com suas regras próprias e privilégios, cujo objetivo é criar feudos de benefícios que são convertidos em aumento salarial e promoção de carreira, dissociados de resultado efetivo, de mérito e de desempenho do servidor público.
Justiça social e segurança jurídica
A reforma administrativa é vital também para reverter a desigualdade social. Um estudo recente do Ipea revela que os funcionários públicos ganham, em média, 57% acima dos funcionários na iniciativa privada desempenhando funções equivalentes. Além de ganhar mais, servidores contam com a estabilidade do emprego e a progressão automática de carreira. A discrepância salarial entre setor público e privado, adicionada à péssima qualidade do serviço público na educação, saúde, infraestrutura e saneamento básico, colaboram para aumentar o desequilíbrio nas oportunidades e perpetuam injustiças.
Sem a reforma administrativa, o Estado vai continuar a ser um ente caro, ineficiente e incapaz de prestar serviço de qualidade para o cidadão. Reformas importantes já aprovadas, como a da Previdência, e a possível reforma tributária, em tramitação, perderão logo o seu impacto positivo se não houver a contribuição de uma reforma administrativa. Isso porque as despesas com o Estado vão continuar a crescer, inviabilizando a gestão dos governos estaduais e municipais e destruindo a capacidade de se fazer investimentos públicos.
Da mesma maneira, se aprovarmos as reformas essenciais para atrair investimento privado em infraestrutura, mas postergarmos a reforma administrativa, a morosidade do Estado e a insegurança jurídica vão continuar afugentando investidores, retardando a retomada do crescimento e do emprego.
O presidente Jair Bolsonaro relutava em enfrentar essa reforma porque é um velho aliado do corporativismo estatal. O seu histórico de votação na Câmara não deixa dúvidas. Ele votou contra a reforma administrativa proposta pelo governo Fernando Henrique. Em 2011, votou a favor do aumento do salário de parlamentares, juízes e ministros. Votou também contra a extinção da aposentadoria integral para os servidores.
Bolsonaro precisa agir como presidente da República e colocar o interesse da nação acima de sua simpatia pessoal pelo corporativismo estatal. O envio da reforma administrativa para o Congresso era urgente havia tempo.
É necessário agora pressão da sociedade para que a reforma não fique apenas na promessa. Um projeto tímido será inútil, tamanho o atraso brasileiro em tratar do assunto. Um exemplo: se a nova legislação tiver validade apenas para os novos servidores, o seu impacto levará décadas para ser notado. Cabe agora ao Congresso aprofundar o debate, enfrentar com coragem o corporativismo e apresentar um projeto amplo, cujo objetivo central deve estabelecer incentivos para o desenvolvimento e a promoção dos bons servidores.
A reforma administrativa é a pedra angular da reforma do Estado. Sem ela, vamos continuar carregando nas costas o fardo de um Estado ineficiente que sufoca a boa gestão pública, pune o bom servidor, estanca a retomada da economia e perpetua a desigualdade social.