Projeto original do governo previa aumento na carga de R$ 6,15 bilhões e penalizava as empresas. Nova versão negociada com lideranças da Câmara alivia a carga, mas cria rombo de R$ 30 bilhões nas contas públicas
Existe uma proposta consistente de reforma tributária, resultado de anos de trabalho de negociação. Trata-se do projeto apresentado em maio pelo deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB), relator da comissão especial mista da reforma tributária. Ainda haveria atritos a serem desbastados, mas é um um texto relativamente consensual.
O governo, contudo, nunca se envolveu diretamente na construção desse projeto e tenta sabotá-lo a todo momento. Primeiro, insistiu na criação de um imposto sobre transações financeiras, uma reedição da famigerada CPMF. Depois, enviou ao Congresso um projeto limitado, que apenas se encarrega de fundir o PIS/Cofins, de alçada federal, e propõe a criação da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS).
O ICMS, de alçada federal, ficou de fora, e é imposto que é a grande fonte de disputas tributárias e guerras fiscais. Mais recentemente, o governo apresentou aquilo que chama de segunda fase da reforma tributária, que é a reformulação para o Imposto de Renda. Foi uma grande lambança. Tanto é que, poucos dias depois, o próprio ministro da Fazenda, Paulo Guedes, tratou de rejeitá-la e buscou negociar alternativas com as lideranças da Câmara. Ontem, em uma entrevista, disse que “errou”.
A reforma do Imposto de Renda proposta originalmente pelo governo trazia dois grandes pecados originais: aumentava a carga de tributos e penalizava ainda mais os investimentos produtivos. Inicialmente, o Ministério da Economia informou que as mudanças elevariam a tributação em R$ 900 milhões em 2022.
Na segunda-feira, a Receita divulgou novos cálculos e a carga seria na verdade bem maior. O aumento de arrecadação previsto para o próximo ano, caso o projeto seguisse adiante sem modificações, seria de R$ 2,47 bilhões. Somando o impacto nos dois anos seguintes, a conta adicional de tributos chegaria a R$ 6,15 bilhões até 2024.
A conta maior, seguindo essa proposta, recairia sobre o mercado financeiro e as empresas. Como mostra a tabela abaixo, as projeções evidenciam quais eram as intenções do governo: de um lado, aliviar o tributo para uma parcela das pessoas físicas, que será beneficiada pelo reajuste da tabela de isenção do Imposto de Renda; de outro, promover uma elevação pesada nos tributos pagos pelos investidores e pelas empresas.
O governo argumentou que o objetivo foi tornar a tributação mais progressiva, isto é, fazer os ricos pagarem mais impostos e reduzir a carga para aqueles que ganham menos. Isso ocorreria, entre outras medidas, por meio da tributação dos dividendos, que hoje são isentos.
De fato, especialistas no tema defendem há tempos que deveria haver tributação sobre os dividendos, porque as isenções atuais favorecem as famílias mais ricas do País. É algo que deve ser levado em consideração, mas que exigiria um debate aprofundado, no qual deve se levar em consideração o conjunto do impacto das medidas.
Como apontou o economista Bernard Appy, entre outros que se dedicam aos temas tributários, houve um forte viés populista na proposta original do governo. Jair Bolsonaro quis cumprir a sua promessa de corrigir a tabela do Imposto de Renda das pessoas físicas. Mas, para isso, queria passar uma conta pesadíssima para as empresas.
A chiadeira do empresariado foi unânime. Nem mesmo grupos mais fiéis a Jair Bolsonaro e a Paulo Guedes esconderam a insatisfação. Pressionado pelos empresários e pelo mercado financeiro, o ministro recuou. Decidiu então fazer o que deveria ter feito anteriormente: conversar. Em negociações com o relator da reforma na Câmara, Celso Sabino (PSDB-PA), aceitou rever a desastrada proposta original.
A nova versão, apresentada por Sabino na terça-feira, trouxe mudanças radicais em alguns aspectos. Pela proposta, haverá uma forte redução no IR das pessoas jurídicas, cuja alíquota cairia dos atuais 25% para 12,5% em 2023. Os fundos imobiliários, que passariam a pagar impostos, devem continuar isentos. A tributação de dividendos foi mantida.
Com as mexidas, entre ganhos e perdas, a previsão agora é de que haja uma queda na arrecadação, como indica a tabela abaixo. Haveria uma perda de recursos de R$ 26,9 bilhões no próximo ano e de R$ 29,9 bilhões em 2023.
A revisão açodada e oportunista deixou algumas empresas felizes, mas outras ficaram ainda mais preocupadas, porque poderão perder isenções fiscais. Seria uma medida para compensar parcialmente a redução do IR. Sem falar que a nova proposta abre um rombo nas contas públicas, já em situação de fragilidade. A perda não será apenas para o governo federal, e também de estados e municípios, que dividem parte do bolo da arrecadação com o IR. Segundo o pesquisador do Ipea Sergio Gobetti, especialista em finanças públicas, 60% da desoneração vai cair no colo dos governos estaduais e municipais, que terão menos recursos para prestar os serviços públicos. Dificilmente aceitarão calados essa proposta.
Em resumo, a confusão permanece elevada. O improviso traz incertezas e aumenta a complexidade do sistema tributário (porque há uma série de regras específicas), inibindo a realização de projetos empresariais que poderiam sair do papel no atual momento de recuperação da economia.
O episódio é uma síntese do desgoverno atual. Bolsonaro, derretendo nas pesquisas de opinião, tenta emplacar projetos populistas e eleitoreiros. Tenta reduzir o imposto para uma parcela dos assalariados, enquanto procura engordar o caixa para gastar na ampliação do Bolsa Família e outros projetos de possível impacto positivo em sua popularidade. Nada disso se encaixa em um projeto verdadeiro de reforma estrutural que traga mais produtividade e mais empregos.
“O ideal é o sistema tributário ser progressivo, simples e justo”, disse o economista Nilson Teixeira, em um artigo no Valor. “Não é o caso do Brasil.”
Independente do mérito de um ou outro ponto, a proposta de mudança no IR trouxe apenas mais ruído, complexidade adicional e aumento nas incertezas regulatórias e jurídicas. A reforma tributária ampla e necessária permanece relegada.