VirtùNews entrevista o embaixador Rubens Barbosa sobre os primeiros desafios da relação com os Estados Unidos no governo Biden. Embaixador do Brasil em Washington entre 1999 e 2004, Barbosa analisa o intercâmbio comercial entre os dois países, fala de convergências e divergências quanto ao multilateralismo e a democracia, e de assuntos delicados como política e diplomacia ambiental, vacinas e alinhamento com a China.
Relação Brasil – EUA no governo Trump
Durante o governo Trump ocorreram alguns avanços na relação com o Brasil. Os mais importantes foram o avanço sobre o Acordo de Salvaguarda dos Territórios, o acordo sobre o lançamento de satélites da base de Alcântara. Houve o apoio do governo para a entrada do Brasil na OCDE e entendimentos setoriais para a facilitação de comércio. Tivemos também diálogos na área ambiental e comissões mistas para examinar áreas específicas.
O intercâmbio comercial no governo Biden
No governo Biden haverá melhora no volume comercial. Em 2020, a queda no comércio com os EUA foi de 25%. É uma queda terrível em relação a 2019. Não acredito que o governo Biden vá impor alguma restrição comercial ao Brasil. Mas há problemas que devem ser tratados. As primeiras medidas que Biden tomou na área ambiental foram a volta ao Acordo de Paris, a questão do gasoduto do Alasca e a manifestação sobre a importância da área ambiental para a economia americana. Dentro disso vai haver desdobramentos que vão extravasar o território americano.
Vai haver uma aliança dos EUA com a Europa e um problema concreto vai se apresentar ao Brasil, que é o Sistema Geral de Preferências, ato unilateral norte-americano em relação aos países em desenvolvimento para permitir a entrada do comércio sem tarifa. O governo Biden enviou ao Congresso proposta para retirar da lista de beneficiários os países que não cumprem a legislação interna e a legislação internacional na proteção ambiental e das florestas tropicais. Esse é um ponto novíssimo. Caso o Brasil seja excluído, deixaremos de exportar US$ 2 bilhões com tarifa zero.
Carta de Bolsonaro a Biden
O ponto mais importante da carta é a convergência entre os interesses do Brasil e dos EUA na área ambiental e na área de democracia e liberdade. Os compromissos estão explícitos no recém criado Diálogo Ambiental entre Brasil e EUA. O primeiro compromisso é eliminar o desmatamento, a queimada e o garimpo ilegal na Amazônia. O segundo é cumprir os compromissos de redução da emissão de gás carbônico do Acordos de Paris. China e Europa avançaram na redução de emissões. O Brasil, não. Por isso ficou de fora da Cúpula de Ambição Climática da França. Quando o governo americano decidir conversar com o Brasil, eles vão examinar tudo isso. Como vamos ficar?
Outro ponto: Será mantida a decisão de o Brasil acompanhar os EUA e aprovar os princípios da política de rede limpa (clean network) para excluir empresas chinesas da concorrência para a instalação da plataforma 5G? O Brasil não aderiu à posição americana de barrar a China, mas atendeu aos princípios. No meio dessa crise, o Brasil vai impedir a Huawei de participar na concorrência do 5G? Não vai, na minha opinião. Mas aí como fica o compromisso assumido com os EUA? As relações com o novo governo americano não serão fáceis.
Essa confrontação entre EUA e China vai durar muito tempo. A tecnologia 5G é apenas um dos aspectos. Haverá embate na área comercial, tecnológica e militar. Então por que decidir agora um alinhamento com os chineses ou com os americanos? Neste momento, o Brasil precisa cuidar de seu próprio interesse. O Brasil não precisa tomar partido.
Prevejo conflitos do Brasil com os EUA em outras áreas também, como na questão da democracia. Biden disse que vai organizar uma conferência com os países democráticos ainda em 2021. Podem questionar o presidente Bolsonaro: como é que o senhor explica sua declaração de que, no Brasil, a democracia e a ditadura são definidas pelas Forças Armadas? As palavras são muito importantes na diplomacia, sobretudo para um presidente da República. Não estou fazendo aqui nenhum juiz de valor. Existem fatos que serão levantados contra o País quando os EUA resolverem conversar com o Brasil.
Ameaça de sanções
Não acho que vá haver sanções na área comercial. Porque interessa aos EUA ter uma boa relação com o Brasil. Somos um grande mercado. Por que, então, fariam sanções? Mas a questão do acesso especial dos mercados não é uma sanção, é um ato unilateral americano decidido pelos países. Europa e Japão já suspenderam o acesso especial de produtos brasileiros. Os americanos poderão fazer o mesmo. Já podemos imaginar Bernie Sanders e outros democratas falando sobre isso no Congresso. É uma situação muito complicada.
Convergências e divergências
Na carta enviada a Biden, Bolsonaro diz que o Brasil e os EUA teriam posição convergente com relação aos organismos multilaterais. O Brasil tinha uma posição convergente com a de Trump, que considerava, como o Brasil, os organismos internacionais uma ameaça para a soberania das nações. Havia uma solidariedade brasileira com a agenda do Trump sobre família, aborto e outros temas. Logo em seus primeiros dias, Biden mudou a orientação dos EUA em relação ao aborto. O que vamos fazer? Como a ministra Damares vai reagir a isso? Vamos nos alinhar à nova política? Orientações de Trump sobre questões ambientais e raciais vão mudar com o Biden. Como vai ficar o Brasil?
Política ambiental
Se não ajustarmos as nossas políticas e a retórica do governo com relação ao ambiente, haverá consequências concretas. O primeiro efeito será no acordo com a União Europeia: ele nunca será ratificado. Isso é uma perda para o setor privado. Além disso, os países europeus estão aprovando legislações proibindo a compra de produtos originários de áreas onde haja devastação ambiental.
A rigor, não existe desmatamento para plantio no bioma amazônico. O plantio ocorre na Amazônia Legal. Mas como explicar que a Amazônia Legal é diferente da Amazônia? Trata-se de um conceito criado pelo Brasil, por questões tributárias e regulatórias. Apenas 10% da soja tem origem da Amazônia Legal, mas o plantio é no Cerrado, não na área de floresta. É muito difícil explicar isso para o público externo. O fato é que a Amazônia virou um tema ambiental global.
As instituições internacionais vão começar a dificultar a concessão de empréstimos. Para evitar isso, não resolve fazer discurso, não adianta reclamar dizendo que é protecionismo ou gasta com propaganda oficial. O que adianta são resultados concretos. As críticas só vão desaparecer quando as queimadas e os desmatamentos forem reduzidos aos menores níveis possíveis. No ano passado, ao contrário, eles cresceram. O Brasil está perdendo credibilidade. Até 2018, o País vinha se esforçando para cumprir os acordos feitos internacionalmente. Agora, não.
Diplomacia ambiental
Para responder a essas acusações no exterior, estamos trabalhando há um ano em projeto com professores da USP que eu chamei diplomacia ambiental. É um levantamento de todos os compromissos que o Brasil assumiu, em grande parte pelo Itamaraty, de 1992 até 2019. Associados a cada um deles está seu respectivo grau de cumprimento. Isso é um estudo original, ninguém tem. Queremos concluir o estudo até fevereiro, porque a credibilidade do governo está muito baixa. Existem ONGs com interesses específicos que vão ficar desarmadas. Porque até 2018, o Brasil cumpria quase tudo.
O mundo mudou
Com a posse do presidente Biden, o País terá que se ajustar. O mundo, de dois anos para cá, mudou bastante. O Brasil se resguardava nas políticas americanas. Mas agora, sem Trump, o Brasil perdeu um lastro. Essa aproximação deixou de ser um asset e virou uma liability. Virou um pesadelo. Bolsonaro seguiu a posição negacionista de Trump e deu no que deu.
Em 2019, o Brasil xingava China, França, Alemanha. Países que a gente hostilizava ou dava pouca importância, o exemplo maior é a China, são países cruciais agora. A China fornece matéria-prima para a vacina. A gente teve que pedir a três ministros e ao presidente da Câmara para falarem com o embaixador da China. É uma situação muito delicada, porque o mundo mudou e o País não se deu conta nesses dois primeiros anos de governo. Em 2021, tardiamente, ele percebeu que está isolado e sem alianças. Nem os Brics foram prestigiados. O Brasil acumula dívidas com os organismos internacionais.
O governo foi apanhado no contrapé, porque não entendeu que as circunstâncias mudaram, sobretudo depois da pandemia. O País deveria ter feito um ajuste gradual de suas posições ao novo momento.
Vacinas e lições
O assunto da vacina foi muito politizado aqui no Brasil. A discussão foi contaminada pela disputa do presidente com o governador de São Paulo. Faltou coordenação no governo para acelerar a liberação das vacinas e dos insumos na China e na Índia. Sabe por que não saiu a vacina da Índia naquele momento? Porque o presidente preparou um avião com faixas e o diabo, quando o governo da Índia havia pedido discrição. Eles estavam começando a vacinação naquele mesmo dia. Tudo isso o governo brasileiro sabia.
Não responsabilizo os ministros Ernesto Araújo e Ricardo Salles por tudo que está acontecendo. São pessoas que refletem o pensamento do presidente. Não adianta substituir o Ernesto e colocar um outro diplomata que fará a mesma coisa. Se o novo ministro desafiar o presidente, será demitido. Quando digo que o Brasil não se deu conta das mudanças, estou dizendo que o presidente não se deu conta das mudanças. Deveríamos saber que lições tirar disso.
Empresas brasileiras, por exemplo, poderiam estar procurando desenvolvedores de vacinas para comprar patentes, fazer parcerias e acordos comerciais para produzir vacinas aqui e exportar para toda a América Latina. É uma questão de mercado. Temos capacidade para isso. Mas o País foi pego no contrapé e não está sabe reagir. Precisa pensar no futuro. É preciso identificar os problemas e traçar uma estratégia.