O Brasil dos próximos anos deverá se acostumar à privatização dos serviços de água, esgoto e coleta de lixo.
A Organização Mundial da Saúde estima que cada real investido no acesso ao saneamento básico traz de 3 a 36 reais em retorno para as pessoas beneficiadas direta ou indiretamente. Frente a este resultado certo e de baixo risco, nenhum bom empresário agiria como a maioria dos mandatários do Brasil em todos os níveis, que ignoram essa fonte de riqueza e bem-estar. Os investimentos em saneamento no Brasil não chegam a metade do que o próprio governo estabeleceu como necessário em 2013 ao editar o Plano Nacional de Saneamento Básico (Plansab).
Histórico do investimento em saneamento
O Plansab foi anunciado pelo governo Dilma, em 2013, como uma pequena revolução. Era o último capítulo de uma discussão iniciada em 2007, com a aprovação de uma lei (número 11.445/07) sobre o setor. Nos anos seguintes, diversos estudos foram realizados, culminando no Plansab, que tinha como meta principal a universalização do acesso a água e esgoto no Brasil em 20 anos ou seja, até 2033. O Brasil parecia, finalmente, decidido a resolver uma vergonha histórica.
Parecia. Como tantos planos abrangentes anunciados com pompa e circunstância, o Plansab rapidamente escorreu, metáfora necessária, para o esgoto. O motivo alegado foi o de sempre: falta de dinheiro de governos para cumprir as metas. Na ânsia principesca de decidir tudo e fazer tudo, o Estado brasileiro se estabeleceu por lei como um quase monopolista das obras e serviços de saneamento. Não ocorreu, claro, aos governos petistas quebrar o monopólio do Estado, mesmo diante da falência financeira que se aprofundou a partir de 2013.
Coube ao governo Temer a iniciativa de, por meio de duas medidas provisórias, tentar quebrar os embaraços legais que impediam a iniciativa privada de investir em saneamento.
Abriu-se, então, uma nova resposta para os cerca de 100 milhões de brasileiros sem acesso a coleta de esgoto e aos 35 milhões sem acesso a água tratada.
O senador Tasso Jereissati foi encarregado de cuidar do andamento da MP do Saneamento. Com a paciência que define seu temperamento, Tasso analisou 500 emendas. Acatou cerca de 80. A MP, no entanto, teve vida atribulada nos labirintos do Congresso e seu prazo de validade expirou antes que pudesse ser votada.
Como é vedado ao executivo reeditar uma mesma MP ou mandar ao Congresso uma outra com o mesmo objetivo, a saída foi retomar a questão por meio de um Projeto de Lei (PL), iniciativa exclusiva do parlamento. Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados e Davi Alcolumbre, presidente do Senado, se comprometeram a aprovar o PL 3.261/2019, de autoria do próprio senador Tasso Jereissati. Cumprindo o que prometeram, os dois líderes foram à luta. O Projeto de Lei foi aprovado em regime de urgência no Senado. Espera-se que na Câmara ele progrida para a aprovação com a mesma celeridade.
Quando entrar em vigor, a nova legislação dará a necessária segurança jurídica aos investidores privados interessados em colocar seu dinheiro em obras e serviços de esgoto e tratamento de água. Como se verá, não é pouca coisa.
Estado, Estado, Estado
Com a inflação alta e dívida disparando, o Estado brasileiro estava quebrado na virada do século 21. Sobrava pouco para investir. A participação federal nos investimentos era tímida. O dinheiro apareceu com o benfazejo aumento do preços das commodities mais exportadas pelo Brasil – soja, carne e minérios. A maré externa favorável trouxe a oportunidade de lançar um ambicioso plano para universalizar o acesso ao saneamento básico no Brasil. Ele veio na forma da lei 11.445/2007 .
O marco regulatório então aprovado era baseado no mesmo espírito que guiava o setor desde os tempos do regime militar: Estado, Estado, Estado. Embora a iniciativa privada fosse permitida a operar, todo o desenho do mercado visava privilegiar empresas estatais, em sua maioria estaduais.
Os serviços públicos de água e esgoto são de responsabilidade dos municípios. Cada prefeitura pode fechar contrato com quem quiser e escolher como será a regulação local. As estatais estaduais surgiram, neste contexto, como uma saída federativa para amparar municípios sem capacidade de investir em saneamento.
Como dos dois lados do balcão estavam entidades oficias, estados e municípios, as contratações de serviço de saneamento foram realizadas sem a necessidade de se fazer licitações. Naturalmente, com é esperado nesses casos, as conveniências políticas dos governadores passaram a sobrepujar as reais necessidades de saneamento dos moradores das cidades atendidas, ficando a qualidade do serviço prestado no fim da linha das prioridades. Esse triste arranjo atende pelo jargão oficial de “contrato de programa” – justamente o que o PL aprovado no Senado e mandado para a Câmara dos Deputados pretende extinguir.
Fim dos contratos de programa
Os contratos de programa oferecem larga margem de manobra para que as companhias de saneamento atuem como bases políticas para governadores e prefeitos, fora do alcance, portanto, das exigências de qualidade e de obediência a cronogramas que deveriam presidir todos os serviços públicos. Quando o PL do saneamento estiver em pleno vigor, as empresas privadas que vencerem as licitações obrigatórias para atuar nessa área estarão automaticamente submetidas aos órgãos reguladores e ao Ministério Público, portanto, bem mais sensíveis às punições em caso de negligência, desrespeito aos cronogramas ou queda de qualidade no atendimento.
Nos raros casos que empresas privadas já respondem atualmente por serviços de saneamento já se nota uma maior capacidade de resposta às exigências dos consumidores. Estando presente em apenas 6% dos municípios brasileiros, as empresas privadas de saneamento fizeram, em conjunto, 20% do total de investimentos no setor. Como resultado, os indicadores mostram que as empresas privadas de saneamento prestam serviços melhores, cobrando tarifas bastante similares às cobradas pelas empresas estatais.
As Medidas Provisórias propostas no governo Temer propunham o fim, no curto prazo, dos contratos de programas, que seriam convertidos em contratos de concessão. Depois de protestos de governadores, o PL de autoria de Tasso Jereissati alongou o prazo de transição, mas manteve o espírito de mudança.
Com o projeto de lei, apenas os contratos de programa em vigor serão mantidos. Licitações, com concorrência pública, serão a regra para os próximos. No novo cenário vence quem oferecer as melhores condições de serviço público (qualidade da água, tarifa, investimentos, etc), sem privilégio a estatais.
Permitir a participação privada não é suficiente
Como está hoje, cabe a cada município definir o processo regulatório (ou entregar a decisão ao governo estadual), o que abre amplo espaço para desventuras populistas em detrimento dos interesses dos consumidores. O PL de Tasso Jereissati corrige essa distorção ao criar a Agência Nacional de Águas, um órgão federal que se tornará responsável pela definição de parâmetros para a regulação dos serviços prestados.
Este ponto exemplifica, junto com os contratos de programa, por que não basta permitir a operação da iniciativa privada. É preciso garantir que o mercado seja justo, que as licitações funcionem às claras e que a política pública seja previsível. Afinal, nada afugenta tanto o investidor quanto a incerteza.
Privatizações vêm aí – e não há motivo para temê-las
O Brasil dos próximos anos deve se acostumar à privatização dos serviços de saneamento. Além do projeto de lei, o governo federal incentiva a venda dessas empresas no chamado ‘Plano Mansueto’ de recuperação dos estados.
É a resposta política a uma conjuntura que favorece essas medidas. Otimizar o orçamento e estimular a economia são necessidades prementes. Os governadores de São Paulo e de Minas Gerais já deixaram públicas a intenção de privatizar suas estatais de saneamento.
A experiência internacional, em especial as iniciativas de Argentina e Chile, ampara a decisão brasileira de privatizar o setor de saneamento. Um artigo assinado por três pesquisadores no Journal of Political Economy, um dos periódicos mais respeitados da ciência econômica, evidencia com robustez estatística os benefícios da privatização na Argentina. A privatização derrubou a mortalidade infantil, na média, em 8% nas cidades onde foi implantada, com a vantagem extraordinária de ser ainda mais efetiva quanto mais pobre e desamparada eram as pessoas beneficiadas. Nas cidades mais pobres da Argentina, a mortalidade infantil foi reduzida 26% depois da entrada em funcionamento dos serviços privados de saneamento. Nada impede que os mesmos efeitos positivos sejam registrados em um Brasil aberto ao investimento privado em saneamento.