Enquanto reformas estruturais emperram, o rolo-compressor de Bolsonaro e Lira investe em medidas eleitoreiras que inflam a popularidade do governo ao custo de mais desequilíbrio fiscal. Estados e municípios correm risco de perder recursos
O presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), encontrou uma solução formidável para reduzir os preços dos combustíveis. A ideia, que conta com o apoio do presidente Jair Bolsonaro, é reduzir o ICMS, o imposto de alçada estadual cujos recursos são parcialmente transferidos aos municípios. Pelo projeto de Lira, não seria reduzida a alíquota, mas ela passaria a incidir sobre o valor médio de referência dos últimos dois anos, e não dos últimos 15 dias, como tem sido a regra há anos. Em um passe de mágica, a gasolina ficará 8% mais barata nas bombas. O preço do etanol cairá 7%, e o do diesel, 3,7%.
Ao menos são esses os cálculos apresentados por Lira.
É um benefício com chapéu alheio. Com uma mão, Bolsonaro e Lira distribuem a benesse para os eleitores. Com a outra mão, subtraem as verbas dos governadores e dos prefeitos.
Pode-se argumentar que a fórmula atual de cobrança é falha, porque contribui para intensificar a volatilidade nos preços dos combustíveis. Mas a mudança abrupta, na base do improviso, contribui apenas para ampliar a insegurança jurídica e fiscal, além de criar novos desequilíbrios nas finanças de estados e municípios. É clientelismo e populismo rasteiro. A eventual alteração do sistema de cobrança deveria ser feita dentro de uma negociação mais ampla de uma reforma tributária abrangente. Mas nisso Bolsonaro e Lira parecem pouco interessados. Investem em políticas para favorecer grupos específicos, no lugar de promoverem reformas em benefício do interesse comum.
“Já estive do outro lado do balcão, como ministro da Fazenda, mas nunca me ocorreu uma possibilidade tão extravagante quanto passar as contas para os estados, que o que estão tentando fazer”, afirmou Henrique Meirelles, atual secretário de Fazenda e Planejamento de São Paulo.
Já estive do outro lado do balcão, como ministro da Fazenda, mas nunca me ocorreu uma possibilidade tão extravagante quanto passar a conta para os estados, que é o que estão tentando fazer, no momento.
— Henrique Meirelles (@meirelles) October 6, 2021
Como explicou uma análise publicada pelo Virtù (Disparada no preço da gasolina não é culpa do ICMS), o aumento no preço dos combustíveis tem muito pouco a ver com impostos. Os tributos são historicamente elevados, mas os reajustes atuais nos preços da gasolina e do etanol refletem a alta nas cotações internacionais. Pesa também no Brasil a cotação do dólar, que subiu mais de 40% em relação a janeiro de 2019. Como resultado, enquanto a inflação geral bateu em 10%, a inflação dos combustíveis chega a 50%.
O botijão de gás também está cada dia mais caro. Os reajustes nos combustíveis seriam suavizados caso a moeda brasileira não estivesse tão fragilizada em relação à americana.
O dólar mais caro, um reflexo da pouca confiança no governo Bolsonaro, eleva o custo ainda dos alimentos e de outros produtos cujas cotações seguem a referência dos mercados internacionais. Tudo isso corrói o poder de compra da população, especialmente dos mais pobres. Entre as principais economias do mundo, o Brasil tem a terceira maior inflação, atrás apenas da Argentina e da Turquia.
A dupla “BolsoLira” teve outra ideia brilhante para aliviar o bolso das famílias vulneráveis: recriar o vale-gás. Não seria exatamente igual ao benefício que existia no passado, antes da unificação dos programas assistenciais no Bolsa Família. Seria um pagamento adicional provisório que seria incluído a famílias que recebem o Auxílio Emergencial. A ideia é clientelista, que se justifica apenas para inflar a combalida popularidade do governo. O melhor momento de Bolsonaro, em termos de aprovação entre os mais pobres, foi no início do pagamento do Auxílio Emergencial de R$ 600.
O sucesso do Bolsa Família foi criar critérios para a política pública que fizessem do benefício um programa de estado, e não de governos. O Vale-Gás é eleitoreiro em sua essência. Mais uma vez, o governo e o Congresso não se empenharam em uma reforma ampla dos programas sociais, como defendem várias boas propostas apresentadas nos últimos meses, e buscam agora o caminho fácil do populismo bancado pelo bolso alheio.
Como bem afirmou o professor do Insper Ricardo Paes de Barros em uma entrevista à Folha, não faltam recursos para combater a pobreza no País, faltam prioridades. “É totalmente insensato dizer que não existe dinheiro aos mais pobres”, disse ele, um dos maiores especialistas nesse tema. “Se melhorarmos a focalização do gasto público, vai transbordar recursos para os pobres.” Paes de Barros fez uma ótima análise dessa questão em uma entrevista ao Virtù.
Mais uma vez, governo e Congresso parecem pouco empenhados em fazer reformas que contribuam para aprimorar a utilização dos recursos públicos. Empenham-se apenas em buscar maneiras de driblar os limites do teto de gastos, com a justificativa injustificável de que esses recursos para os benefícios são emergenciais.
Apenas com a aprovação da PEC dos Supersalários seria possível poupar R$ 213 milhões ao mês, de acordo com estimativas do Centro de Liderança Pública (CLP). Mas o projeto tramita vagarosamente no Congresso. Foram meses e meses até a votação na Câmara e agora ela dorme nas gavetas do Senado.
Enquanto isso, os privilégios e penduricalhos pagos à elite do funcionalismo já consumiram R$ 12 bilhões desde 2016. Trata-se de um vergonhoso programa de transferência de pobres para ricos. Mas Bolsonaro e Lira pouco se importam.